O Rio que era Doce hoje está em coma e seu nome transfigurou-se numa amarga ironia. Às margens deste <curso d’água chamado de Watu pelo povo Krenak>, hoje devastado pelo crime hediondo que o contaminou com resíduos da mineração após a ruptura das barragens em Minas Gerais, Ailton Krenak alçou-se ao posto de grande pensador de nossa condição humana no Antropoceno.
Estas mega-tragédias sócio-ambientais, que suscitaram livros-reportagens de algumas das melhores jornalistas do Brasil como <Cristina Serra (A Tragédia de Mariana)> e <Daniela Arbex (Arrastados)>, são mais do que mero pano-de-fundo para a reflexão Krenakiana: é este o abismo onde ele está caindo, de olhos bem abertos e mente lúcida, esforçando-se para abrir o paraqueda colorido de um futuro possível. Um futuro que será ancestral ou não será.
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Ciente da importância histórica descomunal que os grandes rios possuem na história das civilizações – como falar do Egito sem mencionar o delta do Nilo, como abordar a Índia sem falar na importância do Ganges?-, Krenak é hoje o cantor do blues dos rios agredidos. É o porta-voz das vidas que no território brasileiro tem sido devastadas pela destrutividade humana e pelo ecocídio capitalista, do Watu ao Xingu, do Tietê ao Tapajós.
Os rios são saudados em <Futuro Ancestral (Cia das Letras, 2022, organizado por Rita Carelli)> não de forma idílica, em celebração à limpidez de suas águas, mas num lamento revoltado que emerge das vísceras de alguém que não se conforma com a tremenda destrutividade, imediatismo e toxicidade do capitaloceno. Ailton Krenak é alguém que ainda não banalizou, nem começou a achar normal, fenômenos como o Rio Tietê reduzido a esgotão a céu aberto na Pauliceia Desvairada:
“Em São Paulo, o Tietê, infelizmente, na parte urbana que percorre, foi convertido em esgoto. Não sei como uma cidade pode fazer isso, o corpo de um rio é insubstituível. A Pauliceia tapou de forma desenfreada seus cursos d’água, inclusive o rio Ipiranga, nas margens do qual foi proclamada a Independência do Brasil, sugerindo que não se tem sequer apreço por essa memória. Os rios que ainda não foram asfixiados nas cidades seguem correndo no cerrado, nas florestas, na Mata Atlântica e no Pantanal — todos biomas flagelados — e são os primeiros a terem os corpos apropriados pela fúria de certos humanos em suas atividades incessantes: essa gente que está empesteando o planeta só percebe os rios como potencial energético para construção de barragens ou como volume de água a ser usado na agricultura e, assim, o Brasil segue exportando sua água através de grãos e minério. Tratam os rios de maneira tão desrespeitosa que dá a impressão de que sofreram um colapso afetivo em relação às preciosidades que a vida nos proporciona aqui na Terra. Outra prática aviltante é transformar as margens de um rio em pasto.” (KRENAK: 2022, pg. 12-13 do ebook)
Assim como Adorno insuflou-nos a pensar uma “educação após Auschwitz” e Stengers vem nos conclamando a refletir “no tempo das catástrofes”, Krenak é hoje um filósofo-ativista senti-pensante com senso de urgência e que faz uso da palavra durante a queda no abismo. Na obra de <Mauro Zag, Para Aprender a Cair No Abismo (Contraciv, 2020)> temos acesso a uma excelente síntese da crítica à civilização realizada por Krenak (<baixe o PDF>).
A ética propugnada por Ailton tem a ver com a sabedoria do <“pisar suavemente na Terra”, expressão que batiza o filme de Colón> e que evoca a noção, cada vez mais marcante no debate sobre aquecimento global, acerca da pegada de carbono. Não há futuro se não soubermos diminuir a destrutitividade de nossa pegada sobre os ecossistemas e biomas planetários. Contra a arrogância especista do auto-entitulado homo sapiens, ele receita o amargo remédio de sabermos que “a vida começou sem os humanos e vai acabar sem a gente” (p. 54). Tanto a urbanidade quanto a sociabilidade precisam ser repensadas radicalmente para acolher outras formas de vida que não a dos animais humanos e seus pets, ou seja, uma superação do especismo e da urbe apartada da vida selvagem é urgente:
“Nossa sociabilidade tem que ser repensada para além dos seres humanos, tem que incluir abelhas, tatus, baleias, golfinhos. Meus grandes mestres da vida são uma constelação de seres — humanos e não humanos. (…) Para além de onde cada um de nós nasce — um sítio, uma aldeia, uma comunidade, uma cidade —, estamos todos instalados num organismo maior que é a Terra. Por isso dizemos que somos filhos da terra. Essa Mãe constitui a primeira camada, o útero da experiência da consciência….” (KRENAK: op cit, p. 51, 52 do ebook)
Um dos conceitos mais magistrais veiculados em Futuro Ancestral é o de fricção. Trata-se de uma contribuição muito relevante de Ailton Krenak ao nosso processo de repensar a educação de modo a propiciar uma experiência formativa que não seja formatativa, doutrinadora, especista, sanitarista, que tranca as crianças e jovens em prédios e lhes diz que mexer com terra, planta, semente e bicho é coisa suja e inadequada. Ailton fala-nos sobre os aprendizados que recebeu “em fricção com a natureza” e clama em favor de nossa reverência perante a “potência de se perceber pertencendo a um todo e podendo modificar o mundo” (p. 102 e 103):
“A verdade é que uma criança com sete, oito anos de idade já começa a ser treinada para ignorar o meio ambiente. É isolada em uma sala de aula para ser alfabetizada e vai sendo incutida nela, desde cedo, a ideia de uma vida sanitária. (O que é muito contraditório, porque muitas crianças de comunidades urbanas não têm sequer acesso a saneamento básico, mas vão logo sendo ensinadas a ter nojo da terra.) O que eu chamo de educação sanitária é muito anterior às normas impostas pela pandemia de covid-19. É a formação, ao longo de décadas, de uma mentalidade em que uma criança não deve mexer na terra para não sujar as mãos. Que se você arranca uma batata do chão, não deve levar para dentro de casa, pois está suja. (O ideal é pegar uma batata lavada e empacotada no supermercado.) Quando foi que terra virou sujeira? Faz tempo que eu assisto a esse bombardeio sanitário na cabeça das crianças e não vejo nenhum educador questionar isso. Pois para mim isso está diretamente ligado com essa forma de ver o mundo como um almoxarifado e está no cerne da crise ambiental que estamos enfrentando hoje.” (KRENAK, op cit, pg. 55 do ebook)
O sábio Ailton sabe que o pódio é uma mentira cruel – nele, só cabem três vencedores, excluindo uma multidão de perdedores – e que vale mais a partilha. “Nós começamos, desde cedo, a sugerir para as crianças que elas precisam alcançar um patamar de excelência e ocupar lugares de destaque, pois no topo do pódio só cabe um. No entanto, esse pódio é uma mentira, porque não tem nenhum lugar no mundo onde só cabe um, sempre cabem todos.” (p. 53) A fábula da meritocracia nos quer correndo atrás de um lugar no pódio, sob os holofotes, mesmo que para isto tenhamos que usar as cabeças de outros seres vivos, humanos ou não, como escada. Mas nenhum troféu vale a pena se para conquistá-lo você precisou pisotear crânios no seu caminho para o topo. O pódio para poucos poderia apodrecer sem perda: mais valeria uma cultura da roda de partilha, da comunidade de aprendizado, da colaboração criativa, que pode se manifestar numa roda de cantigas e batuques que unem ao invés de apartar.
Também sobre o tema da educação do futuro, acho belo o elogio que Krenak tece a Greta Thunberg, iniciadora do movimento Fridays for Future que instiga os jovens a fazerem greve escolar nas sextas-feiras para poderem se dedicar ao ativismo ecológico. Greta “instiga os jovens contra o mundo adulto, dizendo que eles não vão às aulas naquela semana, pois, afinal, a escola não tem tanta importância assim”, escreve Ailton. “A gente devia olhar bem para esse gesto, ouvir a voz dessa criança que ainda não desistiu do mundo e que é capaz de propor outra narrativa para ele, pois a que a gente teve até agora precisa ser questionada… A geração da Greta literalmente acusa os adultos de serem ladrões de futuro. Tem acusação mais terrível do que essa?” (pg. 54 do ebook)
O Krenak tem aliança afetiva com Thunberg: ambas pessoas, apesar do abismo geracional que as separa, acusam o mundo adulto, o establishment ocidental, a modernidade capitalista tardia, de estarem em negacionismo obscurantista diante da catástrofe em curso; Ailton e Greta <não querem de nós o placebo da esperança reconfortante de que tudo ficará bem>, basta que rezemos com uma Bíblia numa mão e a cartilha neoliberal dos Chicago Boys na outra; eles querem que a gente entre em pânico como se a casa estivesse em chamas. Pois está.
Em interlocução com cosmovisões plurais que coexistem na pluricultura do planeta, Ailton Krenak é hoje o propositor de caminhos para aquilo que na América do Sul se chama de buen vivir – sumak kaway em idioma quéchua. Trata-se de uma sabedoria em prol do bem-viver que exige “colocar o coração no ritmo da terra” – última frase de Futuro Ancestral, livro que também exige de nós um imperativo ético à la Heráclito: sejamos água!
“Dizem que a quantidade de água que existe na biosfera do planeta Terra agora é a mesma de bilhões de anos atrás, quando se formaram os ecossistemas terrestres que a gente aprecia. Diante desse argumento, alguém pode dizer: “Ora, se a água nunca diminui, qual o problema?”. Acontece que ao transformarmos água em esgoto ela entra em coma, e pode levar muito tempo para que fique viva de novo. O que estamos fazendo ao sujar as águas que existem há 2 bilhões de anos é acabar com a nossa própria existência. Elas vão continuar existindo aqui na biosfera e, lentamente, vão se regenerar, pois os rios têm esse dom. Nós é que temos uma duração tão efêmera que vamos acabar secos, inimigos da água, embora tenhamos aprendido que 70% de nosso corpo é formado por água. Se eu desidratar inteiro vai sobrar meio quilo de osso aqui, por isso eu digo: respeitem a água e aprendam a sua linguagem. Vamos escutar a voz dos rios, pois eles falam. Sejamos água, em matéria e espírito, em nossa movência e capacidade de mudar de rumo, ou estaremos perdidos.” (KRENAK: 2022, op cit, pg. 14 do ebook)
A SER CONTINUADO…
APRECIE TAMBÉM:
< Cineasta Colón na Revista Cult >
< Amazônia.org.br >
< Site da Unicamp >
< SESC-SP entrevista Ailton>
Publicado em: 02/06/23
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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